quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Calvino, Reformador impopular (MC)

João Calvino, o teólogo que personifica a Reforma do cantão suíço de Genebra, nasceu no dia 10 de Julho de 1509, em Noyon, França. No próximo ano, por todo o mundo, Igrejas e organizações cristãs têm um vasto programa para assinalar os 500 anos do nascimento do Reformador, cujo pensamento teológico, eclesiológico e ético, é globalmente designado por “Calvinismo”. O Calvinismo teve, ainda em vida de Calvino, um sucesso enorme e passou rapidamente da Suíça para a França, Holanda e Escócia. O seu crescimento, nos séculos seguintes, só foi contrariado, dentro do Protestantismo, pela acção de João Wesley (1703-1791), fundador do Metodismo, e já próximo a nós pelo Pentecostalismo, formas de Protestantismo de orientação arminianista. Mas as Igrejas presbiterianas ou reformadas, que devem a sua organização à reflexão deste teólogo, continuam a considerar-se no essencial, calvinistas.

O sucesso do Calvinismo veio sempre acompanhado por muita crítica, feita não só ao pensamento do teólogo como ao seu carácter. No século passado, o ataque à figura de Calvino foi particularmente vivo num livro escrito pelo romancista austríaco Stéfan Zweig, com o título Castélio Contra Calvino (1930). Zweig era judeu e viveu, com razão, amargurado contra o fanatismo e intolerância do nazismo, que o perseguiu e obrigou a refugiar-se no Brasil, onde acabou por se suicidar com sua mulher. Na sua revolta, elegera Calvino como figura extrema de intolerância e fanatismo, o que se compreende, mas, mas neste tempo de comemoração do 500º aniversário do nascimento do Reformador impõe-se revisitar esta figura e reconhecer que há em Calvino aspectos dignos de admiração. O que é necessário é começar por olhar para Calvino no contexto do seu século, o século XVI, quando dominava na cultura ocidental um dualismo absoluto entre vida terrena e vida celeste e entre corpo e alma. O homem era então visto pela quase totalidade das pessoas como um ser que passava pela terra apenas acidentalmente, destinando-se ao Céu ou ao Inferno. A vida terrena era uma passagem de preparação e o corpo simples prisão da alma. Era, na verdade, o pensamento pagão grego que dominava o pensamento ocidental, mesmo que se apresentasse com linguagem cristã. Este dualismo opõe-se diametralmente ao pensamento dominante no ocidente desde o século XIX, em que o ser humano é visto como um ser apenas terrestre, simples “bicho da terra”, acabando tudo com a morte. Com aquela antropologia do século XVI, era natural que se aceitasse a tortura e a pena de morte como práticas correctas, já que com elas, acreditava-se, não se tocava no que era realmente importante na pessoa, a alma. Havia mesmo a possibilidade, pensava-se geralmente, de um homem que levou uma vida terrestre condenável, encontrar na morte pela fogueira a purificação dos seus pecados e alcançar assim a bem-aventurança eterna. Obviamente, o pensamento dominante dos nossos dias nada tem a ver com este dualismo e por isso os homens de hoje (excepto os crentes, claro) não podem compreender a suma importância que a religião tinha no século de Calvino. A religião hoje, para quem vê no homem um simples animal racional destinado à destruição final, é uma questão de gosto privado, no máximo tão respeitável como ser adepto do clube de futebol A ou B. Como o “homem moderno” diz que não há Deus, considera totalmente idiota os adeptos da religião A dividirem-se contra os adeptos da religião B, porque “gostos não se discutem”.

O pensamento cristão, que não concorda com o pensamento dominante do século XVI nem com o dominante neste século XXI, afirma que o homem é, de facto, corpo, alma e espírito, mas vê o homem como uma unidade inseparável, e espera a ressurreição do corpo e viver eternamente. Nesta perspectiva cristã, nem todas as doutrinas servem, nem são indiferentes as palavras que dissermos sobre Deus – mas a figura modelo é Jesus Cristo que não aprova a intolerância nem a violência, mas proclama bem-aventurados os que fazem a paz. Obviamente, um crente cristão está em desacordo com o pensamento comum do século XVI e com o pensamento comum deste século XXI.

Do seu tempo e da sua sociedade

Calvino é um homem do século XVI. Nos seus livros (principalmente na Instituição da Igreja Cristã, mas também no Verdadeiro Modo de Reformar a Igreja, nos catecismos, nos comentários da Bíblia, nos seus sermões), há fundamentalmente reflexos do ensino mais rico da Sagrada Escritura, mas temos de contar também com algumas manifestações do pensamento dominante do seu tempo. O infeliz apoio que Calvino deu à condenação à morte do médico e teólogo espanhol Miguel Servet, que rejeitava a doutrina da Trindade, é resultado dessa comunhão de Calvino com o pensamento do seu tempo. Tragédia que nos deve pôr de alerta em relação ao modo como nos deixamos ou não influenciar pelo pensamento do nosso tempo. Naturalmente, um cristão, incluindo o cristão teólogo, deve ser um homem aberto ao seu século, deve viver em comunhão com o seu tempo, mas sabendo que nem tudo o que é moderno merece o nosso apoio.

Mas há outra questão que é indispensável ter em conta quando estudamos a acção e o pensamento de Calvino. É o facto de ser em Genebra que o Reformador actuou. Genebra que, quando ele vai servi-la como pastor (1536-1538 e 1541 até à morte, em 1564), já está, em teoria pelo menos, totalmente convertida à Reforma. O Catolicismo estava completamente afastado e a cidade-estado afirmava-se uma sociedade cristã reformada. Calvino tem, pois, pela frente uma situação desafiadora que a Igreja em termos gerais não encontrava desde os tempos primitivos. Devemos lembrar que o Cristianismo primitivo emergiu com uma grande fragilidade, sendo extremamente minoritário dentro do Império Romano. Não havia, naturalmente, as mínimas condições de a Igreja do primeiro e segundo século estabelecer para a sociedade civil estruturas que dessem corpo aos ideais proclamados pelo Evangelho. Pelo contrário, o que aconteceu foi, progressivamente, a Igreja deixar-se influenciar pelo Estado (constantinização da Igreja), o que implicou a adopção de um governo hierárquico, e a separação rígida do clero e do laicado. Calvino é, entre os Reformadores, o único que encontrou, com textos bíblicos, uma estrutura eclesiástica alternativa, assegurando um papel de extrema importância ao presbítero e envolvendo pela primeira vez os leigos no governo eclesiástico. Ainda que o próprio Calvino não fosse de orientação democrática (não havia democracia nesses dias), ele é, pelo tipo de governo que quis para a Igreja, um dos pais da democracia moderna. Mas é preciso dizer: o teólogo não inventou nada: apenas procurou nas Escrituras o sistema que achava ser da vontade de Deus. Depois, com as mesmas Escrituras nas mãos, Calvino procurou as regras éticas que deviam orientar uma sociedade que se afirmava cristã. Os estudos bíblicos e teológicos que foram feitos nos séculos que nos separam de Calvino permitiram perceber que o seu esforço de criar uma espécie de teocracia cristã estava errado: o Evangelho não pretende dar receitas morais, mas pretende chamar os homens ao arrependimento e à conversão ao Reino de Deus Mateus 6:33. A teocracia de Israel, que o Antigo Testamento em muitos lugares defende, pertence a uma fase da revelação divina, como a Lei é o aio que nos leva a Cristo – mas com Jesus Cristo é inaugurado um tempo novo em que, até à Segunda Vinda, importa que se dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus Mateus 22:21. A Igreja deve ter uma voz profética e denunciar o mal, incluindo os erros do Estado, mas não pode ter a pretensão de querer dominar o poder civil.

Deve acrescentar-se, no entanto, que, se o desejo de Calvino de criar condições para que os valores cristãos determinassem a vida de Genebra, falhou em muitos aspectos, ele teve também muitos resultados positivos, pois escritores que viajaram para a Genebra dos tempos imediatos à acção de Calvino deixaram relatos de grande apreço pela vida cristã que ali se observava. Os frutos do ensino do Reformador perduraram pelos séculos seguintes e mesmo há poucos anos ainda Genebra era uma sociedade exemplar em civismo, com as suas Igrejas calvinistas dando testemunhos admiráveis e não foi por acaso que os dirigentes do movimento ecuménico escolheram, em 1948, esta cidade para nele instalarem a sede do Conselho Mundial de Igrejas, e os políticos escolheram-na para diversos departamentos da Organização das Nações Unidas (ONU), assim como é sede da Cruz Vermelha Internacional e de muitas outras organizações filantrópicas. Hoje, nestes primeiros anos do século XXI, é ainda um cantão pacífico – mas a perturbação do mundo actual também atinge a “República de Genebra” que se orgulha de ostentar um Muro da Reforma, com as estátuas de quatro grandes reformadores calvinistas: Guilherme Farel, Teodoro de Beza, João Knox e, naturalmente, João Calvino.

Vivendo nós numa época de grande confusão religiosa e ética, em que o dinheiro domina os espíritos até mesmo dentro de “Igrejas”, que exploram os povos, temos de reconhecer que Calvino é uma figura da história que merece a nossa admiração sob muitos aspectos. A interpretação que fez do Cristianismo é por vezes, sem dúvida nenhuma, demasiado austera, mas é deste teólogo que nos ficou este princípio fundamental: “Soli Deo Gloria”, (Só a Deus seja dada glória!)

Manuel Pedro Cardoso

Outubro de 2008

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