Rev. Maurício Amazonas, OSE
Karl Barth (1886-1968), além de ser um dos mais importantes teólogos do Século XX, é principalmente reconhecido por sua teologia cristocêntrica. Quando, em 1936, ele escreve A eleição de Deus em graça (In: BARTH, Karl. Dádiva e louvor, 1986, pp.237-255), Artigo que pretendia corrigir os equívocos da doutrina da predestinação elaborada desde a teologia de Santo Agostinho (354-430) e passando pelos Reformadores do Século XVI, Barth ainda articulava seu pensamento teológico à base do conceito do método dialético. Esse método visava enfatizar que quando Deus pronuncia um sim, o ser humano responde com um não, ao mesmo tempo em que quando este diz um sim, Deus o reprova com o seu não. O referido Artigo se desenvolve em quatro partes. Na primeira, Barth vem da constatação de que "a doutrina da predestinação é uma doutrina muito dura, misteriosa, a contradizer dolorosamente todo pensamento não-iluminado". Contudo, o posicionamento de Barth permanece eminentemente calvinista, tendo em vista que ele pretende apenas criticar algumas distorções da doutrina sem, contudo, contrariar o princípio da eleição, pois "nenhuma pessoa em si está em condições de aceitar graça; ninguém pode colocar-se nesta situação. Sempre já é em si mesmo graça quando uma pessoa pode aceitar graça".
Na segunda parte desse Artigo ele provoca um ataque aos predestinacionistas. "Não se pode negar que a doutrina da predestinação, tanto a de Calvino quanto a de Lutero na época do 'Servo Arbítrio' (de Zwínglio, então, nem se fala) sofreu muita influência do determinismo; isto trouxe conseqüências funestas, e precisamos ter muita hombridade de não ir atrás deles neste ponto". Aqui Barth especifica a sua crítica respeitosa a Calvino. (Mantemos os grifos do texto):
A eleição de Deus em graça não é objeto de experiência empírica. Era Calvino quem gostava de mencionar também a 'experiência' como fonte da doutrina da predestinação, ao lado da escritura (sic). Felizmente, o quanto vejo, em nenhum momento ele chegou a argumentar de modo real e palpável a partir da experiência.
Barth ainda defende Calvino dos calvinistas que afirmam o que Calvino jamais afirmou, como, por exemplo, dizer que ele baseou sua teologia na experiência, e aproveita para sedimentar seus postulados na tarefa do teologizar. E diz:
Porém – isso é preciso dizer até mesmo contra Calvino – a teologia não está aí para por meio dela desabafarmos nossas conceituações baseadas na experiência, por mais bem fundamentadas que elas sejam. Se a doutrina da predestinação deve ser bíblica, eclesial e verdadeira, ela não poderá ser sustentada pelo afeto justamente dessa experiência. Desta é que não se poderá extrair qualquer conhecimento teológico. Muito antes, o verdadeiro conhecimento teológico forçosamente terá que problematizar fundamentalmente também essa experiência.
Assim Barth vai elaborar sua reconstrução ou reengenharia da doutrina da predestinação levando em consideração que "a eleição de Deus em graça é verdade da revelação [...] [...] Ela é verdade em Jesus Cristo [...] [...] 'Nele' Deus elegeu aqueles que ele elegeu (Ef 1.4,11; 3.11). O Pai os deu a Ele (Jo 6.37,44,65; 17.6,9,12,24)". Mas se Jesus Cristo é o "espelho da eleição", é preciso levar duas coisas em consideração. A primeira é compreender o significado da eleição e rejeição em Cristo e somente nEle. A segunda coisa é que não se compreendeu ainda o que o Novo Testamento quer dizer com o "eleitos nele". "Pois em Cristo é que estamos eleitos e que portanto devemos reconhecer a nossa eleição precisamente e apenas 'nele'". Se estamos eleitos em Cristo, a eleição é dEle, por Ele, nEle e para Ele. A eleição é para Cristo e nós somos eleitos apenas por sua causa. Por isso é preciso cuidado ao se afirmar: "Eu sou um dos eleitos". Essa frase está incompleta, pois, conforme compreensão dos postulados de Barth, deveria ser: "Eu sou eleito em Cristo".
Mas, para além disso, é preciso assumir que, forçosamente, a predestinação dos eleitos implica diretamente em dupla predestinação. Se uma parcela da humanidade foi eleita para a vida, consequentemente a outra foi eleita para a morte. Dessa forma, o dilema e a dúvida precisam ser resolvidos na teologia de Karl Barth. Esse é o propósito da terceira parte do Artigo. Ele vê aqui o perigo dessa doutrina "ultrapassar a sua função de explicação da graça", e questiona:
Pode-se perguntar também se o conceito de 'dupla' predestinação, mesmo sendo objetivamente correto, não é problemático em termo de linguagem, uma vez que pode ser mal entendido no sentido de criar uma imagem de que há uma rejeição divina do mesmo modo e no mesmo sentido em que também há uma eleição divina. [...] Uma simetria demasiadamente arquitetônica entre eleição e rejeição nos daria uma imagem precária do juízo à direita e à esquerda desse Deus.
Portanto, é somente a partir da nossa rejeição sofrida por Cristo, na morte de cruz; e por nossa eleição nEle, também na morte de cruz, que se pode compreender corretamente o que o seja a Eleição de Deus em graça.
Por mais contraditório que isso possa nos parecer, Deus foi, ao mesmo tempo, vítima e carrasco de Sua própria justiça. Se quisermos suavizar um pouco na linguagem, podemos dizer que Ele foi o sacrifício (ou a vítima) e o sacerdote. É o que Barth chama de "Deus contra Deus". Ele argumenta:
Será Jesus Cristo portador apenas do sim divino ao ser humano? Não é ele – exclusivamente ele – o juiz divino também à esquerda? De que forma chegaríamos a falar de uma rejeição divina senão a partir do conhecimento de Jesus Cristo? Seria ela rejeição divina, juízo de Deus, se, tão rigorosamente quanto a eleição, ela não fosse juízo Seu? Que estranho que somente em nossos dias veio alguém apresentar a seguinte audaciosa formulação: "Não fosse a eleição uma eleição em Cristo, não haveria dupla predestinação e não saberíamos que Deus è (sic) Aquele que mata e também vivifica...; porque então, não O tendo encontrado realmente saberíamos que é 'horrível cair nas mãos do Deus vivo' (Hb 10.31). De uma rejeição predeterminada por Deus somente se poderia falar tendo em vista Gólgota; e então temos que falar dela" (P. Maury). Ora, essa frase ousada simplesmente tem que estar certa! [...] Na perspectiva de Gólgota estão acabados de uma vez por todas o equilíbrio e a simetria de eleição e rejeição. Não podemos reconhecer nossa eleição em Jesus Cristo sem reconhecer primeiro e antes de mais nada a nossa rejeição, e isto mais uma vez também n'Ele. [...] Entenda-se bem: Precisamente Jesus Cristo na cruz é, afinal, o eleito de Deus. Não foi Ele o único a querer e a cumprir a vontade de Deus?
Barth termina essa parte dizendo: "Se é que a doutrina da eleição de Deus em graça deve anunciar graça e concomitantemente conforto, a graça livre de Deus e bem por isso o arrependimento, então ela terá que falar do Deus predestinador, mas não das duas categorias de pessoas predestinadas". Barth assegura que esta foi a intenção original de Agostinho e dos Reformadores.
Na quarta e última parte do Artigo, Barth, bem ao seu estilo, como amante e apreciador da música erudita, principalmente Mozart, prepara um gran finalle. "'Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos' (Rm 11.32)". Dessa forma, "exclui-se com certeza também a noção de que haveria eleitos que não estivessem ameaçados de rejeição, e rejeitados que não tivessem promessa de eleição. Quem poderia estar seguro de si mesmo ou de outros, neste ponto?". Para exemplificar que ninguém pode ter essa confiança em si mesmo, ele cita um reformador: "'Eu mesmo me vejo oscilar constantemente; não passa um momento em que não penso estar afundando'", e declara, sobre a autoria da frase: "Isto Calvino escreveu!" E ainda mais esta: "'Jamais encontraremos dentro de nós mesmos a certeza da nossa eleição' (Calvino). Certeza da nossa eleição nós temos ao termos Deus, que é objeto e origem da nossa fé; a ele nós o temos, pelo fato de ele nos ter".
Mas para compreender um pouco mais sobre a razão pela qual um John Stott afirma que ninguém melhor que Barth assimilou a importância da cruz de Cristo, talvez se faça necessário ainda recorrer a outra obra de Barth onde ele trabalha também com as implicações da morte de Cristo na cruz do Calvário. Em seu livro Esboço de uma dogmática, de 1946, obra na qual ele esboça as doutrinas básicas do cristianismo a partir do Símbolo Apostólico (BARTH, 2006), queremos analisar os comentários das frases 'sofreu' e 'foi crucificado'. Nas considerações iniciais desse Sofreu, Barth nos diz que "a vida de Jesus não é um triunfo, mas sofrimento". (Mantemos os grifos do texto). Após comentar o Catecismo de Calvino rapidamente, ele adentra no Catecismo de Heidelberg, composto pelos discípulos de Calvino, e então cita a Questão 37:
"O que tu entendes pela pequena palavra 'sofrer'?" A isso o Catecismo responde assim: "Que ele durante todo o tempo da sua vida na terra, mas especialmente ao fim disso, carregou em seu corpo e alma a ira de Deus contra o pecado de toda a raça humana". Para Karl Barth isso significa que,
[...] a vida completa de Jesus vem sob o título "padeceu". [...] Se olharmos para este "ele padeceu", podemos começar do fato que ele era Deus que se fez homem em Jesus Cristo, que agora tem de sofrer [...] [...] Aqui há uma revelação da rebelião do homem contra Deus. O Filho de Deus é negado e rejeitado [...] [...] Esta é a resposta do homem à graciosa presença de Deus. Para sua graça, ele não expressa nada além de um "Não" cheio de ódio [...] [...] Pecado significa rejeitar a graça de Deus [...] [...] portanto a transgressão é perversa e má, porque manifesta o protesto do homem contra a graça de Deus.
Aqui também vai aparecer o método dialético de Barth ao continuar usando os binômios opositivos de sim/não. Mesmo que não use o famoso termo "Deus contra Deus", ele aí esta implicado na figura de Jesus Cristo condenado a morrer sobre a cruz do Calvário. Mais uma vez é preciso mostrar como Jesus reuniu em si mesmo a síntese do homem revoltado contra a justiça de Deus, bem como a ira de Deus em revolta contra a desobediência humana. Barth diz:
Mas nisso há também a revelação da ira de Deus contra o homem. "Padeceu" é explicado no Catecismo de Heidelberg como Jesus carregando a ira de Deus por sua vida inteira [...] [...] O homem Jesus em sua unidade com Deus é a figura do homem golpeado por Deus [...] [...] A aliança de paz permanece também acima desta insurgente e assustadora figura do homem. Deus é aquele que se faz culpado e reconciliação. Portanto, o limite se torna visível, ajuda total contra a culpa total. Esta é a última coisa, como ela também foi a primeira, que Deus está presente e sua bondade é infindável.
Em Foi crucificado, Barth inicia com a constatação de que "Deus humilhou a si mesmo". Este é "o mistério da Encarnação", o "mistério completo da fé". Neste ponto ele recorre a Lutero com sua theologia crucis contra a theologia gloriae.
O que Lutero pretendeu dizer com isto está certo. Mas não devemos erigir e confirmar qualquer oposição; pois não há nenhuma theologia crucis que não tenha complemento na theologia gloriae. É evidente que não há nenhuma Páscoa sem a Sexta-feira da Paixão, mas do mesmo modo não há Sexta-feira da Paixão sem a Páscoa!
Barth ainda dilatou a crise do seu método dialético ao dizer que no Cristo crucificado, Deus "faz sua a desgraça da sua criatura", pois "na descrição da existência do Criador que se tornou criatura, o mal aparece; aqui a distante morte se torna visível". Tudo isso aconteceu porque "é tão grande a ruína da criatura que qualquer coisa menos que a auto-entrega de Deus não seria suficiente para o seu resgate". Para Barth, "assim como a graça de Deus é irresistível, assim também o julgamento de Deus é irresistível". E aprofunda:
Deus não seria Deus, o Criador não seria o Criador, a criatura não seria criatura e o homem não seria homem, se este veredicto e sua execução pudessem ser detidos. [...] O julgamento de Deus é executado, a lei de Deus assume seu curso, mas de uma tal forma que o que o homem tinha de sofrer é sofrido por Aquele, que como Filho de Deus sofreu por todos. Tal é o senhorio de Jesus Cristo, que se ofereceu por nós diante de Deus, tomando sobre si o que nos pertencia. [...] É isto que significa justiça. [...] Este é o mistério da Sexta-feira da Paixão. [...] não há conhecimento do pecado, exceto à luz da Cruz de Cristo. Pois somente compreende o que é o pecado, quem sabe que o seu pecado é perdoado. [...] Não temos mais nada para pagar.
Com essa frase "não há conhecimento do pecado, exceto à luz da Cruz de Cristo", nós podemos entender porque Barth dizia no seu último livro, de 1962, Introdução à teologia evangélica, que toda teologia tem que ser cristocêntrica. É que o resumo da vida e ministério de Jesus Cristo está na cruz do Calvário! Barth foi um teólogo conscientemente evangélico e ortodoxo, ao ponto de se chatear com a alcunha de neo-ortodoxo que lhe davam. Para ele não poderia existir velha ou novo ortodoxia, como se fossem duas ortodoxias, mas única e tão-somente Ortodoxia. Apenas isso é o que ele pretendia fazer e nisso gastou toda a sua vida até o último instante. Para encerrar este pequeno ensaio, gostaríamos de citar um dito latino bem lapidar que muito poderia ilustrar o que significava a cruz para a teologia de Karl Barth: Ave crux unica spe mea!
Fonte:
comunidade II Igreja Presbiteriana de Piedade
Leon Morais
Na segunda parte desse Artigo ele provoca um ataque aos predestinacionistas. "Não se pode negar que a doutrina da predestinação, tanto a de Calvino quanto a de Lutero na época do 'Servo Arbítrio' (de Zwínglio, então, nem se fala) sofreu muita influência do determinismo; isto trouxe conseqüências funestas, e precisamos ter muita hombridade de não ir atrás deles neste ponto". Aqui Barth especifica a sua crítica respeitosa a Calvino. (Mantemos os grifos do texto):
A eleição de Deus em graça não é objeto de experiência empírica. Era Calvino quem gostava de mencionar também a 'experiência' como fonte da doutrina da predestinação, ao lado da escritura (sic). Felizmente, o quanto vejo, em nenhum momento ele chegou a argumentar de modo real e palpável a partir da experiência.
Barth ainda defende Calvino dos calvinistas que afirmam o que Calvino jamais afirmou, como, por exemplo, dizer que ele baseou sua teologia na experiência, e aproveita para sedimentar seus postulados na tarefa do teologizar. E diz:
Porém – isso é preciso dizer até mesmo contra Calvino – a teologia não está aí para por meio dela desabafarmos nossas conceituações baseadas na experiência, por mais bem fundamentadas que elas sejam. Se a doutrina da predestinação deve ser bíblica, eclesial e verdadeira, ela não poderá ser sustentada pelo afeto justamente dessa experiência. Desta é que não se poderá extrair qualquer conhecimento teológico. Muito antes, o verdadeiro conhecimento teológico forçosamente terá que problematizar fundamentalmente também essa experiência.
Assim Barth vai elaborar sua reconstrução ou reengenharia da doutrina da predestinação levando em consideração que "a eleição de Deus em graça é verdade da revelação [...] [...] Ela é verdade em Jesus Cristo [...] [...] 'Nele' Deus elegeu aqueles que ele elegeu (Ef 1.4,11; 3.11). O Pai os deu a Ele (Jo 6.37,44,65; 17.6,9,12,24)". Mas se Jesus Cristo é o "espelho da eleição", é preciso levar duas coisas em consideração. A primeira é compreender o significado da eleição e rejeição em Cristo e somente nEle. A segunda coisa é que não se compreendeu ainda o que o Novo Testamento quer dizer com o "eleitos nele". "Pois em Cristo é que estamos eleitos e que portanto devemos reconhecer a nossa eleição precisamente e apenas 'nele'". Se estamos eleitos em Cristo, a eleição é dEle, por Ele, nEle e para Ele. A eleição é para Cristo e nós somos eleitos apenas por sua causa. Por isso é preciso cuidado ao se afirmar: "Eu sou um dos eleitos". Essa frase está incompleta, pois, conforme compreensão dos postulados de Barth, deveria ser: "Eu sou eleito em Cristo".
Mas, para além disso, é preciso assumir que, forçosamente, a predestinação dos eleitos implica diretamente em dupla predestinação. Se uma parcela da humanidade foi eleita para a vida, consequentemente a outra foi eleita para a morte. Dessa forma, o dilema e a dúvida precisam ser resolvidos na teologia de Karl Barth. Esse é o propósito da terceira parte do Artigo. Ele vê aqui o perigo dessa doutrina "ultrapassar a sua função de explicação da graça", e questiona:
Pode-se perguntar também se o conceito de 'dupla' predestinação, mesmo sendo objetivamente correto, não é problemático em termo de linguagem, uma vez que pode ser mal entendido no sentido de criar uma imagem de que há uma rejeição divina do mesmo modo e no mesmo sentido em que também há uma eleição divina. [...] Uma simetria demasiadamente arquitetônica entre eleição e rejeição nos daria uma imagem precária do juízo à direita e à esquerda desse Deus.
Portanto, é somente a partir da nossa rejeição sofrida por Cristo, na morte de cruz; e por nossa eleição nEle, também na morte de cruz, que se pode compreender corretamente o que o seja a Eleição de Deus em graça.
Por mais contraditório que isso possa nos parecer, Deus foi, ao mesmo tempo, vítima e carrasco de Sua própria justiça. Se quisermos suavizar um pouco na linguagem, podemos dizer que Ele foi o sacrifício (ou a vítima) e o sacerdote. É o que Barth chama de "Deus contra Deus". Ele argumenta:
Será Jesus Cristo portador apenas do sim divino ao ser humano? Não é ele – exclusivamente ele – o juiz divino também à esquerda? De que forma chegaríamos a falar de uma rejeição divina senão a partir do conhecimento de Jesus Cristo? Seria ela rejeição divina, juízo de Deus, se, tão rigorosamente quanto a eleição, ela não fosse juízo Seu? Que estranho que somente em nossos dias veio alguém apresentar a seguinte audaciosa formulação: "Não fosse a eleição uma eleição em Cristo, não haveria dupla predestinação e não saberíamos que Deus è (sic) Aquele que mata e também vivifica...; porque então, não O tendo encontrado realmente saberíamos que é 'horrível cair nas mãos do Deus vivo' (Hb 10.31). De uma rejeição predeterminada por Deus somente se poderia falar tendo em vista Gólgota; e então temos que falar dela" (P. Maury). Ora, essa frase ousada simplesmente tem que estar certa! [...] Na perspectiva de Gólgota estão acabados de uma vez por todas o equilíbrio e a simetria de eleição e rejeição. Não podemos reconhecer nossa eleição em Jesus Cristo sem reconhecer primeiro e antes de mais nada a nossa rejeição, e isto mais uma vez também n'Ele. [...] Entenda-se bem: Precisamente Jesus Cristo na cruz é, afinal, o eleito de Deus. Não foi Ele o único a querer e a cumprir a vontade de Deus?
Barth termina essa parte dizendo: "Se é que a doutrina da eleição de Deus em graça deve anunciar graça e concomitantemente conforto, a graça livre de Deus e bem por isso o arrependimento, então ela terá que falar do Deus predestinador, mas não das duas categorias de pessoas predestinadas". Barth assegura que esta foi a intenção original de Agostinho e dos Reformadores.
Na quarta e última parte do Artigo, Barth, bem ao seu estilo, como amante e apreciador da música erudita, principalmente Mozart, prepara um gran finalle. "'Deus a todos encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos' (Rm 11.32)". Dessa forma, "exclui-se com certeza também a noção de que haveria eleitos que não estivessem ameaçados de rejeição, e rejeitados que não tivessem promessa de eleição. Quem poderia estar seguro de si mesmo ou de outros, neste ponto?". Para exemplificar que ninguém pode ter essa confiança em si mesmo, ele cita um reformador: "'Eu mesmo me vejo oscilar constantemente; não passa um momento em que não penso estar afundando'", e declara, sobre a autoria da frase: "Isto Calvino escreveu!" E ainda mais esta: "'Jamais encontraremos dentro de nós mesmos a certeza da nossa eleição' (Calvino). Certeza da nossa eleição nós temos ao termos Deus, que é objeto e origem da nossa fé; a ele nós o temos, pelo fato de ele nos ter".
Mas para compreender um pouco mais sobre a razão pela qual um John Stott afirma que ninguém melhor que Barth assimilou a importância da cruz de Cristo, talvez se faça necessário ainda recorrer a outra obra de Barth onde ele trabalha também com as implicações da morte de Cristo na cruz do Calvário. Em seu livro Esboço de uma dogmática, de 1946, obra na qual ele esboça as doutrinas básicas do cristianismo a partir do Símbolo Apostólico (BARTH, 2006), queremos analisar os comentários das frases 'sofreu' e 'foi crucificado'. Nas considerações iniciais desse Sofreu, Barth nos diz que "a vida de Jesus não é um triunfo, mas sofrimento". (Mantemos os grifos do texto). Após comentar o Catecismo de Calvino rapidamente, ele adentra no Catecismo de Heidelberg, composto pelos discípulos de Calvino, e então cita a Questão 37:
"O que tu entendes pela pequena palavra 'sofrer'?" A isso o Catecismo responde assim: "Que ele durante todo o tempo da sua vida na terra, mas especialmente ao fim disso, carregou em seu corpo e alma a ira de Deus contra o pecado de toda a raça humana". Para Karl Barth isso significa que,
[...] a vida completa de Jesus vem sob o título "padeceu". [...] Se olharmos para este "ele padeceu", podemos começar do fato que ele era Deus que se fez homem em Jesus Cristo, que agora tem de sofrer [...] [...] Aqui há uma revelação da rebelião do homem contra Deus. O Filho de Deus é negado e rejeitado [...] [...] Esta é a resposta do homem à graciosa presença de Deus. Para sua graça, ele não expressa nada além de um "Não" cheio de ódio [...] [...] Pecado significa rejeitar a graça de Deus [...] [...] portanto a transgressão é perversa e má, porque manifesta o protesto do homem contra a graça de Deus.
Aqui também vai aparecer o método dialético de Barth ao continuar usando os binômios opositivos de sim/não. Mesmo que não use o famoso termo "Deus contra Deus", ele aí esta implicado na figura de Jesus Cristo condenado a morrer sobre a cruz do Calvário. Mais uma vez é preciso mostrar como Jesus reuniu em si mesmo a síntese do homem revoltado contra a justiça de Deus, bem como a ira de Deus em revolta contra a desobediência humana. Barth diz:
Mas nisso há também a revelação da ira de Deus contra o homem. "Padeceu" é explicado no Catecismo de Heidelberg como Jesus carregando a ira de Deus por sua vida inteira [...] [...] O homem Jesus em sua unidade com Deus é a figura do homem golpeado por Deus [...] [...] A aliança de paz permanece também acima desta insurgente e assustadora figura do homem. Deus é aquele que se faz culpado e reconciliação. Portanto, o limite se torna visível, ajuda total contra a culpa total. Esta é a última coisa, como ela também foi a primeira, que Deus está presente e sua bondade é infindável.
Em Foi crucificado, Barth inicia com a constatação de que "Deus humilhou a si mesmo". Este é "o mistério da Encarnação", o "mistério completo da fé". Neste ponto ele recorre a Lutero com sua theologia crucis contra a theologia gloriae.
O que Lutero pretendeu dizer com isto está certo. Mas não devemos erigir e confirmar qualquer oposição; pois não há nenhuma theologia crucis que não tenha complemento na theologia gloriae. É evidente que não há nenhuma Páscoa sem a Sexta-feira da Paixão, mas do mesmo modo não há Sexta-feira da Paixão sem a Páscoa!
Barth ainda dilatou a crise do seu método dialético ao dizer que no Cristo crucificado, Deus "faz sua a desgraça da sua criatura", pois "na descrição da existência do Criador que se tornou criatura, o mal aparece; aqui a distante morte se torna visível". Tudo isso aconteceu porque "é tão grande a ruína da criatura que qualquer coisa menos que a auto-entrega de Deus não seria suficiente para o seu resgate". Para Barth, "assim como a graça de Deus é irresistível, assim também o julgamento de Deus é irresistível". E aprofunda:
Deus não seria Deus, o Criador não seria o Criador, a criatura não seria criatura e o homem não seria homem, se este veredicto e sua execução pudessem ser detidos. [...] O julgamento de Deus é executado, a lei de Deus assume seu curso, mas de uma tal forma que o que o homem tinha de sofrer é sofrido por Aquele, que como Filho de Deus sofreu por todos. Tal é o senhorio de Jesus Cristo, que se ofereceu por nós diante de Deus, tomando sobre si o que nos pertencia. [...] É isto que significa justiça. [...] Este é o mistério da Sexta-feira da Paixão. [...] não há conhecimento do pecado, exceto à luz da Cruz de Cristo. Pois somente compreende o que é o pecado, quem sabe que o seu pecado é perdoado. [...] Não temos mais nada para pagar.
Com essa frase "não há conhecimento do pecado, exceto à luz da Cruz de Cristo", nós podemos entender porque Barth dizia no seu último livro, de 1962, Introdução à teologia evangélica, que toda teologia tem que ser cristocêntrica. É que o resumo da vida e ministério de Jesus Cristo está na cruz do Calvário! Barth foi um teólogo conscientemente evangélico e ortodoxo, ao ponto de se chatear com a alcunha de neo-ortodoxo que lhe davam. Para ele não poderia existir velha ou novo ortodoxia, como se fossem duas ortodoxias, mas única e tão-somente Ortodoxia. Apenas isso é o que ele pretendia fazer e nisso gastou toda a sua vida até o último instante. Para encerrar este pequeno ensaio, gostaríamos de citar um dito latino bem lapidar que muito poderia ilustrar o que significava a cruz para a teologia de Karl Barth: Ave crux unica spe mea!
Fonte:
comunidade II Igreja Presbiteriana de Piedade
Leon Morais
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