terça-feira, 28 de dezembro de 2010



Igreja Anglicana: Do começo ao fim
A Igreja Anglicana está prestes a se dividir. E esse destino foi traçado no momento de sua fundação: quando o rei Henrique 8o decidiu romper com a Igreja Católica para se divorciar da esposa e se casar com a amante. Desde então, ela segue um passo à frente da maioria das igrejas cristãs – há 60 anos tem mulheres entre seus sacerdotes, há 10 admite gays no clero e recentemente celebrou um casamento entre homossexuais. Por ser tão moderna, arrebanhou milhões de fiéis pelos 5 continentes. Por ser tão moderna, está se desintegrando. O seu maior trunfo se transformou em seu maior conflito, num dilema que questiona os limites de uma religião baseada na fé em Cristo e no evangelho. A história, do início ao fim, você lê aqui.

Capítulo 1: O início

Inglaterra, 1533. O rei Henrique 8o era casado havia 24 anos com Catarina de Aragão. Com ela, teve 6 filhos, mas só um deles, uma menina, sobreviveu. Preocupado com o futuro do trono, Henrique deixou-se encantar por Ana Bolena – uma dama educada, culta, jovem e louca para subir na vida. O rei pediu o divórcio. O papa Clemente 7o negou. E ainda se recusou a abençoar a sua segunda união. Henrique 8o não pensou duas vezes: cortou relações com Roma e se declarou o chefe de uma nova Igreja – a Igreja Anglicana.

Essa é a parte da história que você conhece. Uma versão muito simplista, diriam os anglicanos. Segundo eles, o desejo de separação já estava presente bem antes desse episódio. Desde o século 2, para ser mais exato. Naquele tempo, ainda não havia a religião católica. Existia apenas o cristianismo. Onde os apóstolos paravam, construíam uma igreja, que ganhava o nome do povo local. Na Grã-Bretanha, virou Igreja Celta: uma adaptação do cristianismo aos costumes, crenças e tradições da região.

No século 6, já a mando da Igreja Católica, santo Agostinho se estabeleceu na cidade inglesa de Cantuária, com o objetivo de converter os anglo-saxões. Virou o arcebispo de Cantuária e colocou a Inglaterra sob a tutela do Vaticano.

Foi assim por quase 1 000 anos, até que o rei, particularmente afetado pelas regras do catolicismo, decidiu proclamar a independência.

Nascia a igreja mais liberal do século 16.

Capítulo 2: A conquista de fiéis

Em tempos de conquista de territórios, angariar fiéis não era das tarefas mais difíceis: a metrópole simplesmente impunha sua religião à colônia.

Mas a Igreja Anglicana fez diferente. Deixou que os povos colonizados contribuíssem com seus próprios valores e idéias. A adaptação era peça fundadora e fundamental da sua estrutura.

Os anglicanos acreditam na Santíssima Trindade e seguem, como todos os cristãos, as Sagradas Escrituras. Entre o catolicismo e o protestantismo, escolheram o caminho do meio. Dos católicos, pegaram a sua hierarquia de padres, bispos e arcebispos. Mas, como os protestantes, eles não aceitam a autoridade do papa (veja o boxe da pág.82). A figura que mais se aproxima disso é o arcebispo de Cantuária – nome herdado de santo Agostinho –, que passa recomendações e mantém a unidade da Igreja no mundo. Mas não impõe nenhuma decisão.

Cada província (o grupo de cada país) é livre para questionar as recomendações do líder, que só entram em vigor após serem discutidas entre representantes do clero e dos leigos. Tudo por respeito à filosofia anglicana, que pressupõe a crença inabalável na maturidade dos fiéis. À Igreja cabe apenas a função de orientar os membros por meio do conhecimento do evangelho.

E assim, democraticamente, cada província construiu uma personalidade, que se reflete até no nome. Não existe uma única Igreja Anglicana: há a Igreja da Inglaterra, a Igreja da Irlanda, a Igreja Episcopal dos EUA, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, e por aí vai. Todas elas reunidas na chamada Comunhão Anglicana, presente em 160 países de todos os continentes do globo. Ao todo, são 80 milhões de fiéis, o suficiente para fazer dos anglicanos a 3a maior comunidade cristã do mundo.

Capítulo 3: A adaptação aos tempos

Em 1944, a Igreja de Hong Kong passava por uma situação singular: não havia homens dispostos a assumir cargos de sacerdócio. Os bispos da província decidiram, então, ordenar uma mulher. Florence Li Tim Oi foi mandada para a colônia de Macau e entrou para a história como a primeira sacerdotisa de uma religião cristã.

Na Igreja Anglicana, as decisões, em geral, aparecem antes dos conflitos: com Florence Li Tim Oi, a discussão de gênero veio à tona. A questão só foi debatida oficialmente em 1968. E precisou de outros 10 anos para que a ordenação feminina fosse recomendada. Não parece uma questão tão complexa. Mas é. Os religiosos mais conservadores entendem que, uma vez que Jesus nomeou 12 apóstolos, todos homens, sacerdotes mulheres vão contra a ordem natural da Igreja. Os liberais discordam, argumentando que essa leitura restrita do evangelho pode dar margem a discriminações. E são a maioria. Hoje, grande parte das províncias aceita mulheres na hierarquia da Igreja.

“Os anglicanos enfrentam os desafios da sociedade moderna com muita propriedade. Em vez de expurgar uma facção dissidente, eles tentam conviver com a diversidade”, diz o sociólogo Edin Sued Abmansur, professor de teologia da PUC de São Paulo. Não é por acaso que boa parte dos novos fiéis venha de outras denominações cristãs – em geral, são ex-católicos e ex-evangélicos –, em busca de aceitação e acolhimento.

Na Inglaterra, por exemplo, a comunidade gay representa cerca de 50% do total. Natural que, com o tempo, alguns deles quisessem participar do clero. Em novembro de 2003, foi ordenado o primeiro bispo assumidamente homossexual da Igreja Anglicana. Gene Robinson, separado e pai de dois filhos, desbancou 3 concorrentes e foi o escolhido para ocupar o cargo na paróquia de New Hampshire, nos EUA.

As Igrejas da África e Ásia e algumas paróquias americanas pediram a expulsão da Igreja Episcopal dos EUA. Em assembléia, o pedido foi negado e outros sacerdotes gays começaram a ser ordenados ao redor do mundo.

A democracia que agregava, abria cada vez mais espaço para divergências: a divisão entre liberais e conservadores ficava cada vez mais clara.

Capítulo 4: A gota d·água

Junho, 2008. A capela londrina de São Bartolomeu estava enfeitada para mais um casamento. O noivo, Peter, esperava ansioso a entrada de seu futuro esposo, David. A decisão do reverendo Martin Dudley, de celebrar com toda a pompa e liturgia anglicana a união entre dois homens, desobedecia a ordem de seu superior, o bispo Richard Chartres. Mas Dudley comprou a briga. “Fiz o que acho certo”, disse.

Peter e David – ambos pastores – trocaram alianças e voltaram para casa sob uma chuva de confetes, sabendo que aquele seria um marco para os anglicanos. Um golpe talvez forte demais para a ala conservadora, que havia muito tempo vinha engolindo em seco as decisões de modernização da Igreja.

“A prática da homossexualidade é um pecado que fere as Escrituras”, diz o bispo Robinson Cavalcanti, da diocese do Recife. Robinson faz coro com outras dioceses conservadoras que têm se mobilizado contra a ordenação e o casamento de homossexuais. Uma contradição, segundo o reverendo Richard Haggis, padre anglicano que já pertenceu à diocese de Londres. “Se Chartres fosse coerente com sua decisão de proibir o casamento entre homossexuais, teria que expulsar todos os padres gays de sua diocese. E, se essa caça às bruxas fosse bem-feita, deixaria cerca de 40% das vagas para serem preenchidas no próximo ano”, provoca. Dudley poderá ser punido. Ou não. Tudo depende do que for decidido nos próximos dias.

Os conservadores já têm uma posição bem clara. No mês passado, 300 de seus bispos se juntaram em uma assembléia independente realizada em Jerusalém e, num manifesto público, afirmaram que não reconhecem como membros da mesma comunidade religiosa a Igreja Episcopal dos EUA e a Igreja Anglicana do Canadá – duas das províncias mais liberais. Também disseram que não almejam o rompimento com a Comunidade Anglicana, mas rejeitam a autoridade do arcebispo de Cantuária assim como a ordenação de mulheres e de homossexuais ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

O recado foi dado: depois de 5 séculos, um novo caminho está surgindo para o anglicanismo.

Capítulo 5: O fim

Enquanto você folheia estas páginas, o futuro da religião anglicana está sendo discutido na Conferência de Lambeth, uma reunião realizada a cada 10 anos com os representantes da comunhão para debater os rumos da Igreja no mundo.

No Palácio de Lambeth, residência do arcebispo de Cantuária, o clima é tenso: 200 dos 800 convocados se recusaram a comparecer, em solidariedade ao bloco conservador. Mas tudo indica que a Igreja não vai recuar. “Não temos como ir contra a história e voltar atrás em nossas conquistas”, adianta Luiz Alberto Barbosa, presidente da Câmara dos Clérigos e Leigos da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, que reúne representantes de todas as dioceses brasileiras. “Temos um problema e não vamos escondê-lo. Vamos discuti-lo.”

Essa discussão esbarra nos princípios do anglicanismo, segundo os quais cada um deve, à luz de sua fé e confiança em Deus, decidir o próprio caminho, por meio da liberdade individual, da autonomia e do discernimento. Ironicamente, essa visão, que motivou a formação da Igreja e que sempre a diferenciou das tradicionais seguidoras de Jesus Cristo, é também a causa do seu enfraquecimento.

Se os bispos liberais não estiverem mesmo dispostos a abrir mão de suas conquistas e os conservadores se mantiverem irredutíveis em suas decisões, estarão caminhando em direção ao cisma. Aos conservadores, ficariam duas opções: formar uma nova Igreja ou voltar às origens, juntando-se à Igreja Católica. E aos 80 milhões de seguidores da Comunhão Anglicana caberia decidir de que lado ficar. Decisões que envolvem riscos. “O desafio da modernidade se impõe a todas as Igrejas. A que tentar se adaptar aos novos tempos sempre terá um preço a pagar”, diz o sociólogo Edin Abmansur.

Michelle Veronese


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